6 de abril de 2010

VIABILIDADE DO ESTALEIRO NO TITANZINHO: UMA QUESTÃO DE VISÃO

Todo ser humano tem sua visão de mundo fruto de seu modelo mental. Nosso DNA e a cultura que nos abraça consolidam valores, conceitos e premissas. Estes, por sua vez, formam nossa consciência através da qual percebemos a vida. A partir daí, decidimos e agimos como humanos em qualquer conjuntura, seja ela na família, na cidade, no país, no planeta ou na política.
A realidade é o que nosso cérebro nos permite perceber.

Júlio Torres (UFC/CE) apresenta três visões de mundo: mecanicista, econômica e complexa.
A visão mecanicista desde o século XVII é caracterizada pelo racionalismo científico, simbolizada pela máquina. Nela não há lugar para valores e princípios éticos. Nas organizações e nos governos, para se alcançar as metas, “os líderes” possuem todos os poderes para efetivá-las. Impera o modelo vertical. As pessoas não têm autonomia para pensar, criar e participar das decisões.

A visão econômica começou a se consolidar com o surgimento da tecnologia da informação. O mercado se agrega à máquina.

Além do poder do capital temos também o poder intangível da informação. As pessoas continuam a ser mercadoria. Enxerga-se, principalmente, o mercado, o cliente e o lucro. O que se valoriza são a capacidade e a competitividade. O servidor e o cidadão são apenas receptores da informação emanada do “líder”.

Finalmente, a visão complexa surgiu a partir dos pensamentos de Albert Einstein (somos matéria e energia), Fritjof Capra (visão ecológica profunda) e da descoberta do DNA.
Nesse olhar a realidade, como um todo complexo, não é somente quantitativa, ela é, principalmente, qualitativa.

Na Teoria da Complexidade as partes não devem ser vistas isoladamente, todas elas se relacionam. A diversidade e a pluralidade devem ser reconhecidas e valorizadas cada vez mais. Edgar Morin, grande antropólogo francês, afirma: “É preciso reagrupar os saberes para buscar a compreensão do universo”.

Na contemporaneidade, a visão complexa e a ecologia profunda nos levam à sustentabilidade no seu sentido da preocupação com a vida das futuras gerações.
Hoje, o pensamento complexo deve ser a referência maior para a análise dos grandes projetos que se dizem social e inovadores.

A apreciação cronológica que fizemos acerca das visões de mundo se aplica, a mesmo modo, à análise da cidade e da compreensão de sua evolução/gestão urbana.
A partir de Ur, a mais antiga das cidades, circundadas de muros, depois, com as cidades abrigando a sede do poder econômico e político.

Mais tarde, as cidades gregas buscaram a democracia com a participação cidadã.
No racionalismo com as administrações das cidades exigindo dimensões padronizadas nas construções das casas e preocupadas com a higiene.

A cidade de Roma, consolidada pelo império romano, influenciou toda a Europa com a civilização urbana.

Na idade média, as cidades consolidaram a urbanidade.

No renascimento com o surgimento da burguesia surgiram as cidades de Gênova, Florença, Veneza e Paris consolidadas em termos sociais, políticos, jurídicos e religiosos.
Depois, vem Londres que provocou grandes transformações estruturais nas cidades européias entre os séculos XVI e XIX.

Paris se destaca novamente pela iniciativa de enfrentar o crescimento acelerado da cidade devido à especulação imobiliária através da elaboração do Plano Urbanístico de Haussmann.
Mas foi no século XX que as cidades tiveram grandes transformações com o aparecimento do automóvel, da expansão das estradas de ferro, do transporte urbano, dos novos sistemas construtivos (arranha-céus) e das novas redes de serviços urbanos.

Surgiram então as metrópoles que consolidaram o planejamento urbano e regional.
Novas ideias surgiram para solucionar os grandes problemas urbanos, como a criação das cidades jardins e a construção de vias expressas para a solução de tráfego.

Em 1933, os arquitetos divulgaram a “Carta de Atenas” que propunha um modelo universal de cidade funcional: habitar, trabalhar, circular e cultivar o corpo e o espírito. Surgem as propostas de Le Corbusier, o arquiteto ideólogo da cidade moderna priorizou a residência. Para ele era preciso descongestionar os centros da cidade com o estímulo ao crescimento da sua densidade.
No Brasil, Lúcio Costa e Oscar Niemeyer seguem o arquiteto suíço com a proposta modernista para Brasília, através das construções de amplas avenidas e das super-quadras.

Mas, logo nascem os opositores ao zoneamento das cidades e criam o chamado Novo Urbanismo reabilitando as cidades com espaços humanizados e de usos mistos. O planejamento urbano passa a ser mais discutido pela comunidade e pelas ONGs. Como na primeira “Habitat, Conferência Mundial sobre Assentamentos Humanos” realizada em Vancouver (Canadá), em 1976.

Na década de 1990, com o avanço da tecnologia e da globalização, grandes obras arquitetônicas são construídas no mundo patrocinadas e financiadas por organismos internacionais.
Surgem, então, as chamadas parcerias poder público e iniciativa privada. Muitas destes projetos foram de revitalização dos centros antigos e das orlas urbanas de cidades com a implantação de equipamentos culturais e de lazer.

Em 1996, em Istambul, ocorreu a “Habitat II” onde se recomendou uma agenda básica de moradia adequada para todos e um desenvolvimento sustentável para as cidades. Não se esquecendo a Conferência da ONU (Rio 92) sobre meio ambiente, na defesa da cidadania e da função social da cidade e da propriedade.

O Brasil ofereceu um bom exemplo com a implantação do Estatuto da Cidade, em julho de 2001.
As cidades não fugiram, com a globalização, à lógica do neoliberalismo: transformaram-se em meras mercadorias. Prevalece a “city financeira” sobre a “polis democrática”.
A competividade entre as cidades, estimulada pela “guerra fiscal”, reduz as receitas públicas e a disponibilidade de recursos para as políticas sociais, aumentando a desigualdade, a exclusão das populações pobres e a degradação do meio ambiente.

O poder público se apequena diante dos interesses imediatos dos agentes economicamente dependentes do processo de produção da cidade.

Impera a crença de que o desenvolvimento e o crescimento das cidades a qualquer custo seriam sempre positivos.

Outras características das grandes cidades: a desindustrialização, decorrente da migração das indústrias para outras regiões acarretando a deterioração física e social de determinadas zonas da cidade; e a horizontalização que fez surgir as periferias pobres - inclusive com monstruosos conjuntos habitacionais - e os condomínios fechados de classe média na fuga da violência urbana.
Falta de habitação, transporte precário, trânsito congestionado e violência urbana fazem parte, hoje, do cotidiano das metrópoles.

Contraditoriamente, as gestões das cidades não priorizam na sua agenda o gerenciamento e o planejamento urbano. Não existem espaços de discussão dos problemas e necessidades da cidade numa visão complexa. As cidades são vistas por partes, tanto territorialmente, como tematicamente. Não há uma política urbana atrelada ao planejamento da cidade como um todo. Os planos diretores são inoperantes: qualquer argumento influente do poder político ou econômico é motivo para se pensar em alterar a legislação urbana.

O resultado é uma cidade caótica sem estruturação urbana e com uma expectativa de futuro elusivo.

As cidades não devem ser confundidas com os governos. Devem incluí-los, como também, os agentes econômicos e privados, as organizações sociais e físicas, os setores intelectuais e profissionais e os meios de comunicação. Qualquer intervenção que provoque impacto em qualquer parte da cidade deve ser debatida democraticamente com todos os atores sociais.
No caso de Fortaleza, ela tem que acompanhar a tendência mundial das cidades avançadas fazendo a transição da “velha” economia para a “nova” economia. Ou seja, Fortaleza deve fortalecer, cada vez mais, o turismo e a atividade de entretenimento e abrigar indústrias de crescimento rápido e não poluidoras, como as do ramo da tecnologia da informação.

A proposta de implantação de um estaleiro na orla marítima de Fortaleza é equivocada, e conseqüência de uma visão econômica já ultrapassada tanto na forma de condução do processo, como também, na essência da indicação.

Ela confronta-se com os valores da contemporaneidade na busca da construção de uma cidade sustentável, mais igualitária, humana e que respeite o meio ambiente.

Neste momento, seria recompensador que a Prefeitura de Fortaleza, a partir desta polêmica do estaleiro, reconhecesse a falha da ausência de um planejamento urbano à altura de uma metrópole como Fortaleza e ressurgisse o órgão de planejamento urbano - erroneamente extinto - o Instituto de Planejamento Urbano do Município – IPLAM.

Ele seria o espaço na estrutura organizacional da gestão para definir uma política de desenvolvimento urbano sustentável para hoje e para o futuro da capital de todos os cearenses.
Marcelo Silva
Arquiteto e Urbanista – Presidente do PV Ceará

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